ONU NÃO É A ÚNICA A DEIXAR O HAITI: OS HAITIANOS TAMBÉM QUEREM SAIR DE LÁ

© Sputnik/ Igor Patrick

19/09/2017

Conforme a data de retorno do contingente brasileiro na Minustah se aproxima, a Sputnik Brasil foi ao Haiti e descobriu que eles não são os únicos deixando o país. Dados da Organização Internacional de Migração (OIM) e do Instituto de Políticas de Migração (MPI) mostram que 80% dos jovens com diploma de ensino superior planejam migrar do Haiti.

O índice geral também impressiona: 60% dos haitianos declaram que gostariam de migrar se tiverem a chance.

Historicamente concentrados na República Dominicana, Cuba, Canadá e Estados Unidos, os haitianos começam a formar comunidades em países não-tradicionais. No Chile já são 18 mil, no Brasil 67 mil somados os legais e as estimativas dos indocumentados. De acordo com o ex-representante especial do Secretariado-Geral e ex-chefe do Escritório das Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, Ricardo Seitenfus, "a terra haitiana sempre teve uma característica de expulsar seus filhos do solo pátrio desde a época da independência até os recentes raros momentos de democracia e estabilidade", servindo inclusive como justificativa para o início da Minustah.

A aproximação diplomática trazida entre o Haiti e os países da missão — em sua maioria latino-americanos — porém, causou o novo êxodo à parte sul do globo. Benesses na concessão dos vistos de permanência oferecidas após o terremoto de janeiro de 2010 que matou mais de 300 mil haitianos tornaram a América do Sul um sonho para boa parte da população.

"Não havia migração periódica [para a América do Sul], só para ilhas vizinhas e EUA. Agora há um direcionamento especialmente ao Chile e ao Brasil. Houve um eldorado haitiano em 2012, 2013, embora tenha se tornado um pesadelo quando entramos [o Brasil] em crise", Seitenfus disse à Sputnik.

A diáspora haitiana em números
© SPUTNIK/ IGOR PATRICK

O perfil do migrante haitiano

Há grupos diferentes saindo do Haiti. Enquanto os escolarizados procuram a continuidade dos estudos em solo estadunidense ou europeu, o Brasil recebe desde 2014 os de baixa escolaridade, ocupando vagas em setores de serviços no Sudeste e Sul do país.

A haitiana Faradjine Alfred, 26 anos, é um exemplo. Fala cinco idiomas (francês, crioulo, inglês, espanhol, português), entende três (alemão, mandarim e italiano), graduou-se em Linguística na Universidade Estatal do Haiti e fez mestrado na Universidade Complutense de Madrid. Formada há 4 anos, ela até hoje não conseguiu nenhum emprego formal no próprio país.

"Nós jovens não temos oportunidades, é muito difícil conseguir um emprego decente no Haiti", reclama. Em um beco sem saída, Faradjine já decidiu: em 2018 pretende se mudar possivelmente para a Europa ou para os Estados Unidos, embora a facilidade com o português também a faça considerar o Brasil mesmo em meio à crise política e econômica.
Entrevista de Faradjine Alfred à Sputnik Brasil

"Os que vão para o Brasil buscam trabalhos de nível mais baixo porque quem tem [o diploma de nível superior] tenta chegar a outros países", disse o embaixador brasileiro em Porto Príncipe, Fernando Vidal, que falou com exclusividade à Sputnik Brasil. Ele encomendou um levantamento no ano passado para filtrar o perfil dos migrantes e descobriu que a maioria dos haitianos aqui chegam para trabalhar em setores com menos especialização, como a indústria alimentícia.

Seria o caso de trabalhar na atração da migração haitiana qualificada? Especialistas divergem. Para a coordenadora do Centro de Pesquisas e Práticas Decoloniais e Pós-coloniais aplicadas às Relações Internacionais e ao Direito Internacional (Eirenè) da UFSC, Karine de Souza Silva, falta estrutura às universidades brasileiras para cooptar este público. Embora Santa Catarina seja um dos estados com a maior concentração de haitianos, poucos são os que chegam ao estado com diploma.

"Continuamos a receber homens jovens, com pouca formação que chegam para trabalhar e trazer a família. Há três anos estamos recebendo estudantes haitianos na universidade, tivemos 25 deles, mas se formam e a maioria vai embora porque não há estrutura para oferecer disciplinas em outros idiomas. Se o Brasil quer receber essa mão de obra qualificada, também deveria simplificar o processo de validação do diploma, que é caro e leva muito tempo", pensa a professora.

Já Seitenfus pensa que se quiser contribuir para a melhora do Haiti, o Brasil não pode empreender na "drenagem de cérebros" do país. "É fundamental criar condições no Haiti para que os haitianos permaneçam no seu território nacional. Enquanto não auxiliarmos na construção de um Estado funcional, com possibilidades de empregabilidade e iniciativa privada forte, nós veremos a situação se agravar", critica.


Quem decidiu voltar

A quantidade ainda é tímida, mas alguns haitianos, depois de formados e com condição de vida estabilizada, resolvem voltar ao país. Não há números, mas há exemplos. É o caso da administradora Savela Jacques Berenji, 36 anos.

A despeito da profissão dos pais, um carpinteiro e uma costureira, ela teve acesso às melhores escolas haitianas, se graduou no Instituto Haitiano de Ciências Comerciais e é mestre em Mudança social na Construção da Paz pela Future Generations University, na Virgínia, Estados Unidos. Estagiou na Índia, no Quênia e no próprio Haiti. Mesmo com ofertas generosas para trabalhar no exterior, decidiu fazer a diferença no próprio país.

"Cada um desses lugares me marcou. Trabalhamos em favelas, províncias, bairros desfavorecidos e era preenchida de ideologia e esperança. Isso me levou a retornar ao Haiti para colocar toda a minha alma a serviço da população e ajudar os haitianos a tornarem-se autônomos", conta.
Savela Berenji: "Quero que os haitianos sejam independentes para não precisarem 
do dinheiro de outros países" © SPUTNIK/ IGOR PATRICK

Ayla Berenji: Pretendo continuar o trabalho de minha mãe, fazer voluntariado em países 
desfavorecidos e aprender com eles. © SPUTNIK/ IGOR PATRICK

Desde 2012, Savela é diretora de uma ONG que trabalha com empoderamento da comunidade, construção de lideranças e redução da criminalidade por meio do esporte. Ela diz não ter a pretensão de ver grandes mudanças durante o seu tempo de vida, motivo pelo qual prepara a filha Ayla Berenji, 12 anos, para assumir a batuta quando mais velha. Mesmo com a pouca idade, Ayla já fala 5 idiomas com fluência.

"Eu a preparo para um grande futuro no Haiti. Espero que ela possa estudar em uma boa universidade na França ou no Canadá, talvez na Inglaterra. Se depois de seus estudos ela não voltasse ao Haiti para trazer de volta o que aprendeu, consideraria que perdi dinheiro em sua educação", avalia.

Savela não precisa se preocupar. Bem articulada, a menina se diz consciente dos privilégios que tem por frequentar uma boa escola privada. Ela nem pensa em viver fora do Haiti. "É claro que vou retornar, eu quero continuar o sonho da minha mãe em melhorar as vidas nas comunidades".

Talvez seja cedo para usar os exemplos como um alento de um país que necessita urgentemente de mão de obra especializada para sua construção. Embora não existam números globais, um levantamento do Centro Schomburg de Pesquisa sobre a Cultura Negra indicou que 7000 haitianos migrarão permanentemente para os Estados Unidos só neste ano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário e pela sua visita.
Volte sempre!!!

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...