MERCADO AQUECIDO. SALVADOR É A 4º CIDADE DO BRASIL EM REDE CICLOVIÁRIAS



01/04/2017

Começou com um corredor e três bicicletas. O empreendimento criado por Roberto Rosa para pagar as dívidas já atravessa duas décadas. Agora ocupa um sobrado no Largo do Tanque. No primeiro andar estão bikes, aros, correias. Em cima, uma pequena oficina – a UTI das magrelas avariadas. Um boneco gigante pedala na porta e Roberto usa chinelos para atender os clientes. Na Loja das Bicicletas é tudo simples. E é tudo movimentado. “Os baianos estão cada vez mais apaixonados por suas bikes”, diz ele, após vender a quinta bicicleta do dia. “E as bikes estão cada vez mais adaptadas às peculiaridades da Bahia”.

As vendas na loja de Roberto não acompanharam a atual recessão econômica. Nem as vendas de seus colegas de ramo. O que está no caixa e na boca dos comerciantes está também em dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). Num levantamento divulgado no início deste ano, realizado em sete capitais brasileiras, Salvador foi a única em que a venda de bikes não arrefeceu. Em 2016, foram comercializadas 27 mil unidades na cidade. Um crescimento de 6% em relação a 2015.

Neste cenário, duas grandes redes nacionais miraram o mercado local. A franquia Sportix (baseada em modelos testados nos EUA e na Europa, com lojas ultravariadas) abriu sua primeira operação na cidade, e a Lev, líder no mercado de bicicletas elétricas no país, passou atuar via e-commerce em Salvador. “Frente às horas intermináveis desperdiçadas no trânsito, ao transporte público deficiente e em meio à procura por uma vida mais saudável, o transporte sobre duas rodas vem se impondo”, diz Cristian Berton, proprietário da Sportix. “E a ampliação da infraestrutura cicloviária da cidade incentiva esse transporte mais econômico, atual e sustentável”.

Cristian toca num ponto que ajuda a explicar o mercado das bikes em Salvador. Até 2012, a cidade possuía 11,4 quilômetros de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas (quando, no asfalto, há uma indicação por onde devem passar os ciclistas). Em 2016, a cidade fechou o ano com 201 quilômetros, o que a coloca na quarta posição entre as maiores estruturas cicloviárias do Brasil, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. O crescimento das ciclovias e das ciclofaixas em Salvador, no entanto, se ajuda a explicar o interesse dos moradores pelas bicicletas, também funciona como um retrato comum às demais cidades: o mapa dedicado aos ciclistas ainda é uma colcha de retalhos, com retas e curvas esparsas, numa teia que não se conecta por completo. Em Salvador, a malha cicloviária corresponde a 2% da malha viária total. Uma média não muito diferente da nacional, onde apenas 2,8% do espaço nas ruas é dedicado às bikes.

“Ninguém pode negar o avanço que há em Salvador, mas precisamos contextualizá-lo”, diz Ricardo Correa, urbanista e sócio-fundador da Citi, empresa especializada em projetos de mobilidade. “Cidades em todo o mundo tomaram medidas para abandonar um modelo baseado no carro nos últimos 40 anos, mas as cidades brasileiras, não. Ficamos estacionados. Agora, nos últimos cinco anos, e sobretudo após as manifestações de junho de 2013, fomos impelidos a fazer o que essas outras cidades fizeram em meio século. Só que tudo de uma vez”.

Num vídeo postado no YouTube, em novembro do ano passado, Ricardo filma o resultado do que chama de “instalação de ciclovias açodadas”. Percorre dez quilômetros de ruas em Salvador, com  a câmara presa ao guidão, narrando o percurso, que vai de ciclofaixas bem sinalizadas à completa ausência de espaços para o ciclista. “As melhores estruturas estão na orla ou em bairros turísticos”, diz. “Não é por acaso que as ações para a bike na cidade são responsabilidade da Saltur (Empresa Salvador Turismo). A bicicleta deixou de ser um elemento marginal nas políticas públicas. Mas, em si, não se tornou uma política pública”.

Compartilhamento

Lançado em setembro de 2013, o programa Salvador Vai de Bike é classificado como estratégico pela prefeitura de Salvador e, dentro da Saltur, tem posição central. A criação de estações públicas de compartilhamento de bicicletas e a melhoria da estrutura cicloviária na cidade estão entre as atribuições do programa. “Tudo é pensando pelo viés da integração. As estações de compartilhamento estão sempre próximas a terminais de ônibus, terminais marítimos ou a elevados da cidade”, diz Liana Oliva, que coordena o Salvador Vai de Bike desde a sua concepção. “A cidade saiu do zero há pouquíssimo tempo. É natural que muita coisa ainda precise ser feita”. Até o final de 2017, diz Liana, o programa deve instalar ao menos de 15 novas estações na cidade.

O modelo de compartilhamento de bicicletas de Salvador é o mesmo de outras capitais, como Rio e São Paulo. As 40 estações da cidade têm patrocínio do Itaú e são operadas pela Serttel, empresa pernambucana especializada no desenvolvimento de tecnologias para a mobilidade urbana. À prefeitura cabem a fiscalização do serviço e a indicação dos locais para as estações. Em Salvador, o programa conta com quase 175 mil usuários e 744 mil viagens já realizadas.

Um avanço importante apontado por ciclistas baianos é a redução da velocidade nas vias onde há estações de compartilhamento. A medida, uma exigência da Serttel à prefeitura de Salvador, encontra respaldo em estudos que mostram que tão importante quanto espaços exclusivos para a bicicleta está um tráfego mais seguro. “A redução das velocidades é algo urgente e deveria ser uma política em toda a cidade, não apenas nas proximidades das estações. É necessário deixar claro que isso traz benefícios também para os próprios motoristas, pois os engarrafamentos diminuem”, diz Thiago Mali, engenheiro civil e especialista em transporte pela Ufba e coordenador da ONG Ciclo Brasil. Em julho de 2016, a organização lançou o livro A Bicicleta no Brasil, que condensa estudos sobre mobilidade sustentável.  “Muitas das críticas que surgem na esteira da criação de políticas para os ciclistas se abreviam em dizer que a bicicleta ‘rouba’ o espaço do carro. São críticas baseadas na ideia de perda de vantagens”, diz Tiago. “Ao mudar o foco para um novo tipo de transporte, é compreensível que quem não esteja conectado se sinta perseguido, desamparado, sentindo que perdeu alguns direitos que, na verdade, são privilégios”.

Visibilidade

Em três anos, a malha cicloviária das capitais do país mais que dobrou de tamanho. São 3.009 quilômetros de vias destinadas às bicicletas hoje. Em 2014, eram 1.414 quilômetros. Um número ainda pequeno se comparado à malha destinada aos carros nas capitais: 108.720 quilômetros. A utilização das ciclovias de Salvador dá conta da disparidade de forças. Sob o solo destinado aos ciclistas, no espaço de um dia, a reportagem encontrou: uma Kombi vendendo churrasco, dois contêineres de lixo, três carros estacionados, uma feira livre. “Se você perguntar a um motorista se ele viu ciclistas na rua, ele dirá que não. Mas, seguramente, esse motorista cruzou com muitos ciclistas. Há desrespeito e invisibilidade em relação aos usuários de bicicleta”, diz Karine Gois, integrante do movimento Bike Anjo, que ensina pessoas a andarem de bicicletas e promove ações de educação no trânsito. Uma dessas ações, realizada a pedido do programa Salvador Vai de Bike, teve como alunos os motoristas de ônibus da cidade. “Foi uma ação acertada e que precisa ser ampliada. Ainda carecemos de uma ampla campanha de conscientização do cidadão, utilizando dados sobre as mortes no trânsito, mostrando os benefícios que um modal de transporte não motorizado traz à cidade”.

Embora não especifique quais serão os novos bairros de Salvador a ganhar ciclovias ou ciclofaixas e nem mencione a redução de velocidade das vias como uma política a curto prazo, a Transalvador, órgão responsável pela ampliação da malha cicloviária, fala em “valorizar e investir na bicicleta”. “Em diversas partes do mundo é assim: primeiro você faz as ciclovias, depois vai conectando as partes. A integração entre os trechos vai acontecer com o tempo, à medida que novas obras de intervenção forem realizadas”, diz à Muito Fabrizzio Muller, superintendente de trânsito de Salvador. “As ciclovias da Paralela e do BRT (que fará integração com metrô no Iguatemi) estão garantidas. Nossa cidade tem a dificuldade do relevo. Ainda assim, todos os novos projetos de requalificação levaram em conta a malha cicloviária”.

Numa recente postagem no Facebook, o grupo Mobicidade, que reúne ativistas pela causa da bicicleta em Salvador, rebateu os argumentos da Transalvador sobre a dificuldade imposta pelo relevo da cidade. “Relevo não é impeditivo”, os organizadores escreveram, acima de uma notícia que mostrava os bons resultados obtidos em Lisboa, cidade com geografia também acidentada. “O relevo pode ser vencido com investimentos inteligentes”, diz Renata Aiala, do Mobicidade. “Um grande passo dado pela prefeitura foi, justamente, a liberação do transporte de bicicleta no Elevador Lacerda e nos planos inclinados, a partir de uma demanda da sociedade. Não foi um movimento espontâneo da prefeitura. Ela recebeu a demanda e soube colocar em prática”.

Rede cicloviária

Heterogênea, a estrutura da rede cicloviária não está presente de forma similar entre as áreas populares e ricas de Salvador. No levantamento feito por Muito, considerando os 201 quilômetros da rede, apenas 47 estão em bairros periféricos e suburbanos. A qualidade do piso também é desproporcional. Na Avenida Beira-Mar do Lobato, em São João do Cabrito, por exemplo, não há sinalização e trechos estão repletos de rachaduras.

Questionada sobre esse caso específico, a Transalvador respondeu  que reformas no local já estão previstas e que “o crescimento desordenado e a falta de infraestrutura que marcam os bairros populares são os maiores dificultadores para a ampliação da malha cicloviária”.

“Em muitos bairros, o problema poderia ser minimizado apenas com a redução da velocidade das vias”, diz Jailton Elói, proprietário da loja Conexão Bike, no bairro de Itapuã. “Nem sempre é imprescindível a construção de ciclovias. E, muitas vezes, é muito mais importante para o ciclista ter acesso a várias vias do que ficar limitado a apenas um trajeto. Cidade boa para pedalar não é aquela em que há milhares de quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, mas onde o trânsito é bem compartilhado”.

Jailton, que abriu a sua loja há cinco anos, um mês após o lançamento do programa Salvador Vai de Bike, diz já ter passado “pelos vários nós que a questão bike vem impondo a Salvador”. “Do deserto à existência da ideia de que bicicleta é só lazer até o entendimento de que é meio de transporte”. Sobre a próximo nó desfeito, para o bem de seu negócio e da cidade, traduziu o desejo num letreiro ao lado da loja: “Mais amor, menos motor”.

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