"A HISTÓRIA DA MINHOCA" NARRADA POR ELA MESMA

     


     Os que gostam de esbanjar conhecimento chamam-me oligoqueto. Também me tratam por anelídeo.  Para os ingleses, sou carthworm (verme da terra). Não gosto que me chamem verme – símbolo da insignificância e até de más intenções. Apesar disso, criaram até um neologismo: vermicompostagem, para definirem a transformação da matéria orgânica sob minha digestão e movimentos.  Outros mais sensíveis, preferem minhocultura.  A estes, obrigada.  E há os que me exploram: sabendo que apareço fácil (como por milagre) em todo o lugar úmido que tenha matéria bruta, resolveram confinar-me – e às minhas milhares de colegas – em caixotes onde nos amamos, multiplicamo-nos adoidadas; e de onde nos expulsam, vendendo-nos a quem tem terras pobres, rãs para tratar, peixes para fisgar.

     Sou hermafrodita: masculino-feminina.  Mas, quem for me comparar às flores batizadas em memória de Hermes e Afrodite, pensando que sou auto-suficiente (que me fecundo quando bem quero), terá uma surpresa. É que preciso de uma parceria (ou parceiro, se preferirem os mais ortodoxos em questões sexuais).  Tal parceria também é hermafrodita, mas (com o eu) não se basta, Precisamos nos unir – nos amar, fazendo intercâmbio de sêmen.  Assim garantimos a perpetuação de nossa laboriosa espécies.

     O azar nosso é que vivemos pouco: um, dois anos no máximo. Felizmente somos precoces.  Nasci à 40 dias.  Já sou adulta.  Já posso procriar.  Fecundada, porei ovos (casulos) que contêm cada ovinho se transformará em minúscula minhoca, só visível em microscópio.  Mas isso em termos máximos. A média fica bem abaixo: cada uma das minhas amigas adultas gera dois casulos por semana. Cada casulo acaba contendo só 2,5 ovos fecundados. Acontece que, de cada 100 ovos, 18 costumam gorar. Ainda assim, não há problema: nosso período de vida fecunda estende-se por até nove meses. Contaram-me por exemplo que quatro “casais” de minhocas adultas e bem nutridas geram 1.500 descendentes em seis meses.  Nada mal, convenhamos.

     Quem me chama de verme ignora, em seu desprezo, que tenho muitas exigências.  Uma delas: temperatura entre 13 e 22 graus.  De nada adianta quererem que habite uma pilha de compostos em fase de curtimento ativo, quente.  Ou fujo para baixo (em busca de terra), ou morro (se não escapar a tempo).  Outros, sabendo que não tenho olhos, acreditam que tolero a luz intensa.  Nada disso. Minha epiderme (se assim posso chamá-la) detesta muita claridade – e, pior que tudo, o calor direto do Sol. Mas tem suas defesas: produz uma substância que protege e garante minha sobrevivência quando algum engraçadinho revolve o esterco, expondo-me a todos os riscos: aves que me adoram, terra seca que me sapeca a pele.  Protegida pela substância, consigo voltar ao meu mundo subterrâneo.

     Meu olfato não é dos melhores.  Todavia, quem quiser garantir a perpetuação da minha espécie fique sabendo: detesto cheiro de alho, cebola, pimenta; não gosto de temperos, óleos, gorduras.  Para viver bem e procriar, preciso ficar na base da pilha de matéria orgânica em fermentação e ir cavando, subindo para o miolo, na medida em que este esfria. A pilha pode conter restos vegetais picadinhos, estercos, terra fértil, folhas coadas de chá, papel triturado, sobras de cozinha, borra de café. Explicando melhor: não abro mão de substâncias minerais (contidas no solo), carbono (representado por amidos e açúcares) e nitrogênio (dos materiais proteicos). Mas prefiro tudo em estado semibruto, semidigerido por bactérias e fungos.  Não me venham com adubo químico pensando que me alimentam: matam-me ou põem-me em fuga, para as profundezas.

     Detalhe: não devoro húmus, produzo-o.  Minha digestão feita por meio de fermentos e contrações, resulta num húmus puro, com pequeno teor de argila.  E, uma vez que não sou prófaga (não como o excreto), chego fatalmente a um compasse: acelerando a transformação da matéria orgânica em húmus – por meio das perfurações, secreções e dejeções – apresso meu fim.  Quando o húmus do adubo orgânico chega a 70 por cento, passo fome – e morro.  Mas (desculpem-me confessá-lo) também sou canibal.  Meu recurso extremo: papar os filhotes de minhas companheiras...

     Se morro, de fome ou de velhice, continuo prestando benefícios à matéria orgânica e ao solo agora enriquecido: elevo seu teor de nitrogênio, ao me decompor.  E faço como nada o faria, porque – contaram-me – meu corpinho seco contém até 72 por cento de proteína.

     Voltemos às minhas exigências.  Engana-se quem supõe que basta transferir minha colônia (milhares de companheiras) para um solo pobre ou árido a fim de melhorá-lo.  Aí morremos de fome ou de sede, quando não conseguimos debandar.  Região onde cai menos de 370 milímetros de chuva por ano não nos serve.  E chão fraco em matéria orgânica só nos serve de cemitério.

     Digo nós: é que formamos uma vasta comunidade de 3 mil espécies conhecidas em todo o mundo, embora os homens falem que só umas poucas têm “importância econômica”.  Tudo bem. Vejamos as mais prestigiadas.

     Uma gosta do solo com doses maciças de matéria orgânica.  É noctívaga e a maior de todas: a Lumbricus terrestris. Outra é a minhoca vulgar, que prefere muita umidade.  É mais encontrada do que a noctívaga.  Aceita solos menos férteis.  Chama-se Allolobophora caliginosa.  Terceira: pequena, delgada, que se dá bem em solos pobres de matéria orgânica.  Mas como faz túneis minúsculos, exerce pouco efeito sobre a constituição do solo.  É a Diplocardia verrucosa.  Agora, uma preguiçosa de nascença: a minhoca verde, curta e grossa.  Trabalha pouco.  Prefere enrodilhar-se e assim viver.  Seu nome, Allolobophora chlorotica.  Grande apreciadora dos estercos é a Eisenia foetida, também chamada anelídeo vermelho.  Tem anéis de tom amarelo e marrom cuja contração e distensão alteram muito o comprimento total da minha coleguinha.  Não gosta de terra cultivada. Finalmente, a Lumbricus rubellus, mais robusta que a minhoca dos estercos; tem cor marrom, mas sem os anéis amarelos.  Também gosta de estercos; não de terras cultivadas, a menos que estas recebam muito esterco semicurtido.

     São duas as que atacam (e transformam) o composto em fase de curtimento: a vulgar (também chamada “minhoca de campo”) e a noctívaga (ou “minhoca da noite”).  Mas não esqueçamos outras coleguinhas, capazes de atuar em solos pouco propícios.  Sei por experiência própria que um chão só é árido por ser impermeável: as águas apenas lambem sua superfície, escorrem e se acumulam em depressões distantes.  Não se infiltram. Daí a pouco, sob o efeito do Sol e ventos, o chão está seco de novo.  Mas, recebendo seu quinhão de matéria orgânica, torna-se meio de vida – e de proliferação – para minha família e outras semelhantes.  A infiltração das substâncias enriquece a camada inferior da terra.  Nós a atacamos, abrindo túneis de quilômetros.  E por aí hão de penetrar mais facilmente a água das chuvas e caldos orgânicos, para felicidade nossa.  A partir de então, começa este ciclo interminável: matéria orgânica + minhoca = maior porosidade = maior retenção de água = maior atividade da minhoca = melhor desenvolvimento das plantas que, morrendo, fornecerão mais cobertura à terra e a nós...

     Dizem-me que um cavalheiro chamado Hopp teve a pachora de verificar: em chão pobre e sem a nossa presença, a água tem a capacidade inicial de se infiltrar apenas 5 milímetros a cada minuto de chuva.  E chão fértil, bem povoado por nós, é infiltrado até a uma profundidade de 2,25 centímetros em um minuto!

     Somos portanto arados vivos.  E aramos cada vez mais fundo, na medida em que encontramos condições favoráveis.  Quanto mais penetramos, mais criamos tais condições.  Mas somos meio trapalhonas: de vez em quando perdemos o senso de orientação.  Somos enganadas pelo frio e umidade de superfície, pela pouca luz dos dias nublados.  Aramos para cima – e, antes de sairmos à superfície, causamos algum estrago em sementeiras que germinam.  Aí se explica por que, em tempos de total ignorância, os hortelãos moviam intensa guerra contra nós, irrigando a terra com querosene ou água de barrela.  É o único deslize que come temos – e ainda assim só nos longos períodos de chuva mansa.

     Pior para nós, que às vezes pagamos caro o engano de ir espiar a luz: encerramos a carreira no papo de algum pássaro.

     Faltaria contar como nos criam em caixotes e nos obrigam a fugir para o fundo sob o efeito da luz e calor de lâmpadas de 40 watts: Confinam-nos na base, que se torna um superpovoado campo de concentração.  Removem a terra de superfície.  Depositam-nos um pouco de matéria orgânica e nos exportam – para agricultores, pescadores de rãs... 

     Não vale a pena entrar em detalhes tão sombrios.  Sou uma independente minhoca do campo, sábia o bastante para dizer: ninguém precisa semear minhoca.  Basta que semeie bastante matéria orgânica semicurtida uma, das vezes ao ano. Aí apareço, como por milagre.  Por isso alguém até supõe que transgrido todas as leis da Ciência – que sou produto de geração espontânea...

Referência: 

DADONAS, M. A horta orgânica em seu quintal. São Paulo: Ground, 1987. 174 p. 

Um comentário:

  1. Bonito artículo y muy buen blog, me hago seguidor. Saludos desde España.
    http://faunacompacta.blogspot.com.es/

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